Casa do Benfica de Paris
O Benfica é não só o maior clube do mundo, mas também um gigante do mercado imobiliário. Só em Portugal tem cerca de 200 casas, mais umas quantas dezenas espalhadas pelo globo. O território continental do país consiste num arquipélago de Casas do Benfica, ao qual se juntam as Casas do Benfica dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Mesmo os menos argutos em geoestratégia, entre os quais não me incluo, sabem que a integridade do rectângulo foi e continua a ser garantida por uma rede de Casas do Benfica fortificadas junto à fronteira. As gloriosas filiais de Mértola, Serpa, Moura, Reguengos de Monsaraz, Arronches, Sabugal ou Carviçais são fortalezas inexpugnáveis onde muito sangue castelhano já foi vertido – e depois devidamente aproveitado para o fabrico de morcelas. Nas casas do Benfica bebem-se minis, comem-se bifanas e defende-se a soberania nacional. E, mais importante, clubística.
As filiais do Glorioso espalhadas pelo mundo, por seu lado, são ninhos onde os sócios e simpatizantes se sentem perto de casa, isto é, do Estádio da Luz. Foi com essa expectativa no coração que me desloquei há uns sete ou oito anos à casa do Benfica de Londres para ver um derby com o sporting. Para meu espanto, em vez de calor e civilidade, encontrei a barbárie. Aquilo que devia ser solo sagrado, acessível apenas a fiéis, estava pejado de lagartos. Além de os deixarem entrar, ainda lhes serviam cerveja, traziam-lhes tremoços, conversavam amistosamente com eles. Mesmo a perder o jogo, os benfiquistas da Casa do Benfica de Londres pareciam gostar da companhia dos sportinguistas. Este tipo de selvajaria impressiona um adulto. Mas quando se trata de uma mente ainda leitosa, o contacto com estas cenas lamentáveis pode ter efeitos gravíssimos. Que o diga o meu irmão António, na altura com uns tíbios 14 anos, cuja lucidez no final desse jogo esmaeceu dramaticamente.
- É com grande alegria que constato que a identidade nacional se sobrepõe aos conflitos clubísticos entre os adeptos do Benfica e do sporting de Londres, e que estes formam uma comunidade una e fraterna. Era bom que este exemplo de paz e tolerância fosse seguido em várias latitudes deste nosso bélico planeta. Por exemplo, no território da antiga Galileia há um conflito sanguinolento entre…
- Cala-te pá! Queres apanhar?!
Por ter esta experiência traumática no bucho hesitei em deslocar-me à Casa do Benfica de Paris. Se fosse só um fim-de-semana lúdico teria evitado confrontar-me com os meus demónios. Mas a estadia na Cidade Luz ia arrastar-se por alguns meses e o apelo do ninho foi mais forte. No dia da minha chegada a Paris havia jogo e duas horas antes do seu início já eu estava à porta das ditas instalações. Porta fechada. Fazendo uso do meu francês fluente, decidi interpelar um transeunte:
- La maison… Benficá… je quérou voir jougou… bebez minis?
O tipo devia ser surdo ou estúpido porque não percebeu logo o que eu queria. Mas depois lá me informou que aquela porta estava quase sempre fechada. Mais vale não abrir do que admitir lagartagem, pensei. Dei meia volta e fui dar a uma feira instalada ali perto. Quando me estava a afastar do certame vislumbrei o avanço de duas pessoas vestidas de vermelho, um cinquentão e um puto. Ao aproximarem-se percebi que estavam equipados com fatos de treino do Benfica e com as camisolas de jogo desta temporada. Tinham cachecóis e bonés, o mais velho fazia-se acompanhar também de um belo bigode.
- Vão ver o jogo à Casa do Benfica?
- Não, vamos à ópera! Eheheheheh. Vem daí pá!
Para entrar na Casa do Benfica de Paris é preciso ser-se sócio. Quem não for tem de pagar. Depura-se assim a clientela à entrada. Só a família acede ao interior do templo. Talvez seja devido a essa intimidade que os seus frequentadores se cumprimentam com um beijinho na cara muitíssimo másculo. Quando se penetra no interior do estabelecimento constata-se que se está perante um Estádio da Luz em versão snack-bar. Mais precisamente, um snack-bar luso-francês: há minis da Sagres, mas quem quiser pode optar por beber um elegante champagne; os conservadores têm tremoços e pastéis de bacalhau, mas os mais arrojados podem pedir uma tosta mista de presunto barrada com mostarda de dijons. Ou seja, na Casa do Benfica de Paris acede-se ao prazer estandardizado das tascas portuguesas e à volúpia gourmet do Gambrinus.
Os jogos são passados numa tela enorme, mas também em múltiplas televisões espalhadas pela sala. Isto faz com que o salão da Casa do Benfica de Paris seja uma autêntica floresta de jogos do Benfica, na qual é impossível que qualquer conversa mais prolongada possa ser entabulada. As imagens e o som cruzado trespassam quem se atrever a perturbar a cerimónia. Mas ninguém perturba. Há, aliás, algo de transcendental na visualização dos jogos neste espaço. Os adeptos batem palmas, incentivam os jogadores, treinam o treinador, acarinham com os habituais agasalhos verbais o “filho-da-puta-do-árbitro-ladrão-de-merda-vai-roubar-para-a-tua-terra”. Parece que se está a desfrutar da poesia do estádio. Há até uma claque organizada que assiste, de forma festiva mas ordeira, aos jogos na cave do edifício. Aqui está uma douta ideia a ser aproveitada pelos clubes: consagrar um espaço no subsolo dos estádios destinado aos arremessadores de bombas e engenhos pirotécnicos para estes poderem brincar uns com os outros sem chatearem quem realmente gosta de bola.
Por esta inventividade, mas sobretudo por ser o tépido aconchego dos adeptos sempre saudosos do seu estádio e da sua terra, desejo uma longa vida à Casa do Benfica de Paris. E Vivó Benfica!
FPC