O fim do bitaite e o último espertalhão
A divisão da humanidade em dois blocos que se digladiam até à morte chegou ao fim. Prevaleceram os mais fortes e iluminados. A razão esmagou a crença, a verdade sobrepôs-se à ditadura da mentira. Os ventos da liberdade e do conhecimento varreram os muros atrás dos quais se escondiam o obscurantismo e o fanatismo militante. De facto, hoje é claro para toda a gente que o velho mundo onde se opunham as pessoas cultas e honestas face aos espertalhões intelectualmente desonestos já não volta. Lamentavelmente. A culpa é dos telemóveis inteligentes.
Nos bons velhos tempos do bitaitismo, os bitaitistas podiam vencer qualquer discussão invocando o primeiro disparate que lhes viesse à cabeça. Podia-se mentir, inventar, intrujar, acusar infundadamente. O ardil era o elixir da argumentação. Ninguém precisava de saber os factos porque não era possível prová-los em sede de discussão. Os intelectualmente honestos não tinham hipóteses contra os espertalhões. A frouxa arma que eles podiam activar era o conhecimento das coisas, limitavam-se a saber do que falavam. Mas a verdade dos factos, a razão, a competência analítica eram pólvora seca quando disparadas a espertalhões que não querem saber disso para nada.
- O primeiro Presidente da República de Portugal foi o Manuel de Arriaga, não foi?
- Disparate, o primeiro de todos foi o Cavaco.
- O Cavaco? Mas a I República foi implantada há mais de 100 anos…
- E o Cavaco que idade é que tem?
-Setenta e tal.
- Mentira. O Cavaco tem mais de 150 anos. Ele é daquela tribo em que toda a gente parece ser jovem. Essa malta só morre depois dos 200. Cala-te, mas é.
Antes conseguia-se facilmente vencer as discussões através da mentira ou cansando o adversário. Os cultos e honestos não tinham como contrariar documentalmente a heróica falácia, e mesmo que a contestassem era sempre possível inventar outras. Mais tarde ou mais cedo, acabavam por se render às sucessivas e demolidoras vagas de bitaites. Infelizmente, este tipo de dialéctica purificadora é impossível nos dias de hoje. A utopia do mundo do bitaite foi desmantelada pela tecnologia do mundo moderno. A máquina impôs-se à ignorância, o homem intelectualmente honesto dizimou o homo-espertalhão.
- Sabiam que o segundo maior país do mundo é o Canadá?
- Não é nada. Toda a gente sabe que é a China. O Canadá é mais pequeno do que o Brasil. És mesmo burro.
- Tira-se já isso a limpo aqui na wikipédia. Ora vejamos… a extensão do Canadá é de 9 984 670 km², a da China fica-se pelos 9 596 961 km². O Brasil é apenas o quinto maior país do mundo, com uma área de 8 515 767 km². Ganhei outra vez. Mais algum bitaite ou estamos conversados?
Mandar bitaites num mundo onde o conhecimento está sempre à mão tornou-se um ofício inglório. A sabedoria oprime agora a criatividade da suposição. A verdade passou a estar do lado de quem está correcto e não de quem grita mais alto. Já não é possível especular sem se ser contraditado por factos concretos e documentados, disponíveis à distância de um clique.
São cada vez mais os bitaitistas que se estão a passar para o lado de lá do muro da moral argumentativa. Muitos já cederam à tentação da leitura de livros, de jornais, frequentam cinemas e teatros, alguns traidores não se coíbem até de recorrer ao conhecimento infinito do universo virtual para robustecerem os seus argumentos. Uma pouca-vergonha. Os que acreditam no bitaite não têm lugar neste mundo ocidental apodrecido pelo culto da razão factual. A fuga desta poluição cognitiva é a única saída. Dizem que nos confins da Amazónia ainda não existem telemóveis inteligentes e Internet, mas não fui confirmar se é verdade ou não.
FPC