Rubrica
A assinatura é a principal protagonista do mundo da identificação. Conhecida pelo seu temperamento burocrático, ela desnuda o nome de cada um perante o olhar inspectivo das repartições, partes interessadas e da lei. Não há contrato ou documento gravoso que dispense a sua tutela. Embora possa actuar sozinha na regulação do comércio das vontades, ela partilha em muitos casos essa tarefa com a sua parceira rubrica. É nesse Robin rabiscado que a assinatura delega a recepção de cartas e outras funções de menor relevância, e é com ele que se faz acompanhar em missões de maior risco, naquelas em que a caneta tem de enfrentar múltiplas páginas e cláusulas contratuais agressivas – fatais para o assinante mais distraído.
Nem sempre os assinantes cuidam da legibilidade das suas assinaturas. Algumas são mesmo bastante indolentes, distendidas, arrogantes no seu descuido. Mas, em regra, é possível identificar o nome das pessoas que as apõem. É precisamente aqui que se cava a principal diferença entre a assinatura e a rubrica. Enquanto aquela se conforma com as prescrições estéticas do abecedário, a rubrica liberta-se desse jugo opressor e entende a escrita do nome como um exercício recreativo. Mais do que uma forma de identificação, a rubrica é um devaneio artístico pelo qual o rubricador sente na ponta dos dedos a mesma verve apaixonada com que Pollock atacava as telas, se embrenha nos enigmas simbólicos forjados por Kandinsky, esquadrinha geometrias familiares ao cubismo de Picasso. Diariamente, milhões de canetas BIC e outros pincéis mais refinados vertem nos cantos das folhas o talento de artistas anónimos, unidos na procura de aprofundar os meandros estéticos do abstraccionismo nominal – ou, como é plebeiamente conhecido, do gatafunhismo.
Apesar da preponderância da rubrica abstracta, certos quadrantes da sociedade portuguesa têm vindo a alertar para os excessos que resultam desta deriva estilística. Defendem um pacto de regime entre a sobriedade da assinatura e o arrojo da rubrica. O seu livro de estilo admite, por exemplo, a popular linha que liga umbilicalmente o início e o fim do nome. Aceitam, aliás, que os contornos dessa linha possam ser lineares, recurvados ou ziguezagueantes. O adorno estético não é para os moderados um mal em si mesmo. O problema coloca-se quando a pulsão inventiva redunda na ininteligibilidade do nome escrevinhado. Um exemplo clássico deste tipo de garatuja é a rubrica-polígrafo, igual ao tracejar de uma máquina da verdade quando escuta um mentiroso – este estilo é igualmente conhecido como rubrica-Himalaias, pois assemelha-se à orografia de uma cadeia montanhosa. Alvos da crítica desta corrente são também a rubrica-anaconda, desenhada em jeito de espiral, a rubrica-pista-de-fórmula-1 e a rubrica-olha-inventei-uma-letra-nova, a qual, embora se assemelhe aos caracteres chineses, é apenas um rabisco desmazelado.
Até aos dias de hoje tenho sido um rubricador que está no limite do aceitável para os moderados e demasiado apegado à ortografia convencional para os radicais. Aponho nos documentos em que me exigem esse certificado nominal a primeira letra do meu nome próprio e dos meus dois apelidos (FPC) e depois agasalho essas três letras no interior de um C com a perna esticada, como aquela sinalização usada pelos professores para indicar a correcção das respostas. Ando, no entanto, tentado a testar o sistema. Desconfio que se desenhasse uma cegonha fumadora, uma bengala com olhos e boca, ou apenas umas linhas embriagadas quando me dizem “faça o favor de rubricar esta página”, ninguém iria reclamar. Vou testar esta hipótese nas próximas semanas e desafio o caro leitor a fazer o mesmo. Caso se confirme que a rubrica é, na verdade, uma prática pueril e obsoleta, talvez fosse boa ideia avançar-se com um abaixo-assinado a exigir o seu fim.
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