Bom dia vizinho
Por uma qualquer razão misteriosa convencionou-se que devemos saudar ou cumprimentar as pessoas que conhecemos, mesmo se esse conhecimento for muito ténue. Fazemo-lo quando passamos fugidiamente por alguém na rua ou como aperitivo para uma interacção mais ou menos palavrosa. Parece que andamos a brincar ao joguinho do reconhecimento. As regras são simples: quem falha cumprimentos é considerado mal-educado, presunçoso e arrogante. Quem cumprimenta não faz mais do que a sua obrigação. Para ganhar este jogo é necessário que uma pessoa consiga cumprimentar sempre, durante a sua vida, todas as pessoas que conhece, ainda que de forma vaga. Até hoje não há notícia de um vencedor. Mesmo os melhores técnicos oficiais de contas e praticantes do jogo das damas falharam, pelo menos, cinco cumprimentos durante a sua esfuziante existência.
Embora seja um jogo apreciado por alguns, o cumprimento é um hábito pueril, não serve para nada do ponto de vista da produtividade social. O cumprimento não aporta valor bruto à convivência entre as pessoas, é uma mera formalidade no processo comunicativo, uma aparência inscrita no discurso. Qual a diferença entre eu dizer a uma louraça “olá, chamo-me Frederico, gostava de entrar contigo no calhambeque do amor” e “chamo-me Frederico, gostava de entrar contigo no calhambeque do amor”? Não seria seguramente por causa do “olá” que eu me escaparia a um terno tabefe.
A irracionalidade do cumprimento é posta em evidência quando se dá o caso de encontrarmos uma pessoa várias vezes no mesmo dia, por exemplo num corredor. No primeiro encontro troca-se um jovial “olá”. No segundo solta-se um “oi” já algo contrariado. No terceiro começam-se a usar gestos, tais como piscar os olhos, lançar a cabeça para trás ao mesmo tempo que se elevam as sobrancelhas, erguer o braço em jeito de saudação nazi ou elevar o polegar como que a pedir boleia. Algumas pessoas conciliam esta linguagem corporal com grunhos imperceptíveis como “oon”, “eiiii” ou “ãooo”. À quarta passagem finge-se hipocritamente que não se está a ver o outro peão e se houver uma quinta ronda a violência torna-se inevitável.
Para além de imprestáveis, os cumprimentos de circunstância são também, em alguns casos, bastante equívocos. Nomeadamente quando são feitos sobre a forma de uma interrogação. Temos em primeiro lugar os cumprimentadores-filósofos, que desafiam os cumprimentados a reflectir sobre o sentido da vida, a morte, o sofrimento humano, a busca da felicidade.
- Então?!
- Então o quê?
- Então… coiso… como é que vai a vida?
- Vai bem.
- Isso é que é preciso.
Depois há os cumprimentadores-galhofeiros. Neste caso eles cumprimentam sob a forma de uma interrogação antevendo que a outra pessoa vai dar uma resposta jocosa.
- Como é que é?
- É grande e grosso e dá duas voltas ao pescoço!
- Ahahahahaha!
Finalmente, dentro desta categoria de gente que saúda através de uma interrogação, existem os cumprimentadores-que-já-deviam-saber-que-não-deviam-dizer-tudo-bem? Estamos a falar de cidadãos que na aparência se preocupam com o bem-estar dos outros, mas que na verdade dizem “tudo bem” só por dizer. Toda a gente faz isto, é normal. Mas quando o remetente deste tipo de cumprimento é uma velha, a pergunta é abraçada sofregamente e dez a quinze minutos da nossa existência são atirados ao lixo.
- Sim, está tudo bem… quer dizer, ando cheia de dores nas cruzes, a minha filha está desempregada e é uma vadia, o meu marido gasta-me o dinheiro todo no café, o Coelho é um grandessíssimo…
O cumprimento é também gerador de fenómenos estranhíssimos. Tenho um vizinho que me cumprimenta apenas quando estamos dentro do prédio. Os níveis de urbanidade do senhor seguem um padrão: regridem em função da proximidade da rua. Quando nos encontramos no primeiro ou no segundo andar deseja-me veementes bons dias, boas tardes, boas noites, adere até às pueris reflexões sobre meteorologia que formam a argamassa das relações entre condóminos, pergunta pela família, queixa-se do entupimento das caixas de correio pela predatória Dica da Semana, mostra-se preocupado com o estado de conservação do edifício. É, no fundo, um amigo. Quando nos cruzamos no rés-do-chão a amizade calorosa dá lugar a uma relação administrativa e o cumprimento nunca vai além de um pressuroso “como vai?” ou de um distraído “olá”. A frieza no trato agudiza-se nos híbridos degraus que ligam o prédio ao passeio. Aí nunca mereço mais do que um “oi” ou um qualquer cumprimento gestual desgarrado. E mal assenta os dois pés no passeio, o indivíduo ignora-me. Quantas vezes nos cruzámos na rua Luciano Cordeiro e em troca de um cordial “bom dia vizinho” recebo apenas uma torrente de absolutamente nada. Nem um piscar o olho, nem uma saudação sonora imperscrutável, zero. Um desmazelo. O cumprimento é um gesto parvo, mas não restam grandes dúvidas de que o senhor é mal-educado, presunçoso e arrogante.
FPC